A aprendizagem da visão, a ambliopia e o seu rastreio: notas básicas

Como é sabido a visão é um processo complexo cuja origem se situa no Sistema Nervoso Central, onde estímulos desencadeados no globo ocular e transportados pelo nervo óptico, são processados e percebidos como uma imagem ou uma forma (fig.1). Isto significa, que para haver visão são necessários três passos essenciais: estimulação da retina pela luz e respectivo desencadeamento de fenómenos eléctricos, transporte destes impulsos para o SNC e sua compreensão cerebral. Por isso, uma alteração em qualquer um destes sectores pode causar dificuldades visuais (fig.2). Porém, resolvida essa alteração, é de esperar o regresso da visão. Se uma criança tem um astigmatismo alto, prescritos os óculos, deveria passar a ver bem. Se tem uma catarata congénita, operada esta e colocada uma lente artificial, a mesma coisa. Se tem uma doença do nervo óptico ou um estrabismo o mesmo deveria acontecer mal a condição subjacente estivesse tratada. Na verdade, muitas vezes não é assim. Os olhos e as vias ópticas podem estar perfeitos, não terem lesões e todavia a acuidade visual ser baixa. A esta diminuição da visão, sem haver uma causa orgânica detectável chama-se ambliopia. Vamos tentar perceber porquê.

Sabemos que as crianças quando nascem não “vêm” correctamente. Pode dizer-se que a visão é uma aprendizagem (fig.3). Os recém-nascidos começam por efectuar movimentos lentos da cabeça e dos olhos em direcção ao estímulo visual, e só atingem a plenitude depois dos 4 anos. A chegada dos estímulos visuais ao SNC, contribui para o aumento de conexões sinápticas e da sua complexidade, assim como para a diferenciação selectiva de neurónios corticais para a cor, orientação, direcção do movimento, visão binocular e estereopsia. Desenvolve-se também competição entre um olho e outro, que se equilibra se os estímulos visuais provenientes de ambos os olhos forem semelhantes, mas que se altera com dominância de um dos olhos se assim não acontecer.

Podemos agora compreender porque é que se houver um erro refractivo, por exemplo um astigmatismo, este deve ser detectado cedo para que, após a sua correcção, o SNC seja estimulado por impulsos que permitam a percepção de imagens nítidas e portanto o desenvolvimento de uma acuidade visual máxima. Esta asserção tem ainda mais importância se esse erro refractivo for mono lateral, para que um dos olhos não fique “preguiçoso”, ou seja amblíope. O mesmo se passa para a catarata congénita e para outras doenças oculares.

No caso do estrabismo, a situação é ainda mais complexa. Cada ponto da retina tem uma direcção visual comum com um dado ponto da retina do outro olho, chamando-se a isto “correspondência retiniana” (fig.4). A unificação cerebral das excitações visuais provenientes de pontos retinianos correspondentes numa percepção única tem o nome de fusão sensorial. Esta fusão, efectuada a nível central, tem a propriedade de despertar a emissão de impulsos nervosos para os músculos extra oculares, de forma que os olhos sejam alinhados de maneira que as imagens “caiam” em pontos retinianos correspondentes, e portanto permitam a fusão sensorial. Quando tal não acontece, isto é quando os olhos estão desalinhados, há estimulação de áreas retinianas correspondentes por estímulos diferentes, dando lugar à percepção de duas imagens e portanto de diplopia. Um sistema nervoso em maturação, que é o que se passa no recém-nascido, ultrapassa este fenómeno inibindo a percepção da imagem colocada num ponto não correspondente. Este processo inibitório cerebral tem o nome de “supressão”. Através da supressão a criança estrábica não tem diplopia, porque a imagem de um dos olhos é, por assim dizer, “desligada”. Todavia há um reverso da medalha, que é ausência de

estimulação de uma área do sistema nervoso central relacionada com um dos olhos, e portanto o fraco desenvolvimento das suas células visuais conduzindo à ambliopia. Podemos portanto afirmar que a ambliopia é consequência directa de um “input” visual anormal numa fase precoce da vida, durante um período sensível da maturação do sistema visual designado por “período crítico”. É um fenómeno cortical, com alterações de perda neuronal no córtex visual primário, causado por deficiência na qualidade dos impulsos nervosos provenientes do olho. A ambliopia é reversível se as deficiências oculares foram corrigidas muito precocemente, ou seja durante o chamado período crítico do desenvolvimento visual. Esse período de susceptibilidade à estimulação visual é máximo nos primeiros meses de vida, diminuindo até aos 4 anos e é praticamente nulo depois dos 7-8 anos de idade e portanto quanto mais cedo se iniciar a correcção das alterações oculares, melhor e mais rápida é a recuperação funcional (fig.5).

Calcula-se que a ambliopia afecte cerca de 3% a 5% das crianças recém-nascidas. Como em Portugal nascem todos os anos cerca de 100000 crianças, pode presumir-se que todos os anos há cerca de 3 a 5000 novos amblíopes. As principais causas são as opacidades dos meios transparentes (como é o caso da catarata), o estrabismo e as alterações refractivas. Dentro destas últimas são mais importantes os erros refractivos em que os valores são diferentes entre os dois olhos (anisometropia) e, sobretudo, se são erros hipermetrópicos (anisohipermetropia).

O rastreio dos factores ambliogénicos, como se percebe, deve fazer-se o mais cedo possível. Idealmente os rastreios da visão devem incidir não na medição da acuidade visual, mas, muito antes disso, na detecção das alterações capazes de lhe dar origem, sobretudo o estrabismo, os erros refractivos e as opacidades dos meios transparentes. Este tipo de rastreio, numa idade muito precoce, necessita de uma capacidade de avaliação técnica só ao alcance de especialistas diferenciados, mas esta dificuldade pode ser ultrapassada com o recurso a meios tecnológicos avançados, como os refractómetros pediátricos (fig.6), que podem ser facilmente utilizados por não oftalmologistas. Estes equipamentos permitem determinar se há erro refractivo importante ou se há desalinhamento dos eixos visuais capaz de provocar ambliopia.

Quando um rastreio mais elaborado não for possível, deve efectuar-se um “ cover-test” de forma a avaliar se os olhos estão alinhados e um teste de estereopsia para testar a binocularidade como o teste de Lang ou de Randot. A partir dos 3 anos pode avaliar-se a acuidade visual com testes simples como por exemplo os “E” rotativos em que a criança roda a sua letra para a mesma posição de outra letra que é projectada à distância (5 metros) e ao perto (30 cm) (fig.7)

Figura 1

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Figura 2:
a. catarata total
b. leucoma
c. maculopatia
d. atrofia do nervo óptico

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Figura 3

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Figura 4

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Figura 5

Com o aumento da idade aumenta a facilidade diagnóstica mas diminui a eficácia do tratamento.

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Figura 6: refractómetro pediátrico

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Figura 7

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